Revista Técnico-Científica O SABER

 ISSN: 1983-7658    

 

Revista Técnico-Científica O SABER 

 ISSN: 1983-7658


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Descortinando sentido(s): a compreensão textual

Ana Carolina Almeida de Barros*

 DOI_logo.pnghttps://doi.org/10.63753/osaber.a15n15.63

 

“O melhor é pensar em termos de sujeito-objeto-sujeito: duas subjetividades criando uma realidade intercomunicável. Sentidos são bens humanos e não fenômenos naturais”

(Marcuschi, 2002, p. 60)

 

 

RESUMO

 

 Voltamo-nos, no presente artigo, a considerações acerca do processo de compreensão leitora, entendendo o humano, ser de linguagem, como aquele capaz de negociar saberes, a partir de uma infinidade de conhecimentos, inclusive, no que configura aspectos sociais, culturais, valorativos e ideológicos. Entendemos, esse sujeito, antes de tudo, como um ser situado. É na troca e no trânsito entre autor-texto-leitor que as emersões de sentido se fazem, é quando as significações emergem, pois no empreendimento das intersubjetividades o potencial de (re)construção atua. Na e para compreensão, estratégias linguístico-cognitivo-discursivas são lançadas mão no acesso ao(s) sentido(s), em ações comunicativas dinâmicas estabelecidas comunitariamente. Para as reflexões empreendidas, acerca da elaboração, processamentos, estratégias, mas também compreensão leitora, fez-se importante revisitarmos Marcuschi (2002, 2008, 2011), Koch (2009), Solé (2009), Leffa (1996), Coscarelli & Novais (2010) e Kleiman (2002). Em todo, a compreensão, quando do aspecto macro, reflete o olhar compartilhado, em horizontes possíveis, para e no auxílio à construção de existências e verdades, sendo, sempre, a linguagem o lócus e a via por onde toda a ação coordenada entre os interlocutores acontece na efetivação de sentidos.

 

Palavras-chave: Língua. Texto. Compreensão. Sentido(s).

 

 

ABSTRACT

 

In this article, we considered the process of reading comprehension, taking the human being like a being of language, who is capable of negotiating knowledge, based on an infinite amount of data, including social, cultural, evaluative and ideological aspects. We understand this individual, first and foremost, as a situated being. It is in the exchange and transit between author-text-reader that the meanings emerge because, in the enterprise of intersubjectivity, the potential for (re)construction acts. In and for understanding, linguistic-cognitive-discursive strategies are used to access meaning(s), in dynamic communicative actions established in a community. For the reflections on elaboration, processing, strategies, but also on reading comprehension, it was important to review Marcuschi (2002, 2008, 2011), Koch (2009), Solé (2009), Leffa (1996), Coscarelli & Novais (2010), and Kleiman (2002). In general, comprehension, from the macro aspect, reflects a shared view, in possible horizons, for and in helping the construction of existences and truths, with language always being the place and the route in which all the coordinated action between the parties involved happens in the creation of meaning.

 

Keywords: Language. Text. Comprehension. Meaning.

 

INTRODUÇÃO

 

Compreender como se dá o processo de construção de sentido(s), configura-se como um deslocamento na busca  por práticas de linguagem efetivadas e articuladas às dinâmicas interlocutivas, que são negociadas, representadas e produzidas intersubjetivamente, apontando para a construção das mais diversas experiências. Para isso, os interlocutores consideram suas necessidades, objetivos e intenções a cada ponto e momento interativo, a partir do que dispõem como bases e orientadores das práticas linguageiras a serem adotadas e desenvolvidas naquele momento de trocas, em uma relação autor-texto-leitor.

Compreende-se que os sujeitos atuantes configuram e constroem mundos, bem como os objetos discursivos a partir da articulação conjugada entre subjetividade e objetividade, organismo e meio, individual e social, assim como em orientações e alinhamentos que têm como base a própria coletividade e suas práticas interativas.

Admitimos, em nosso percurso, enquanto seres cognitivos situados, comportamentos e convenções compartilhados, negociações, bagagens experienciais e um lastro envolvimento sociocultural, que possibilita, ao mesmo tempo, gerar e indicar os fins sociais sobre os quais se atua; perpassados somos por um “estado de conhecimento, social, emocional, etc” (Koch, 2008, p. 20), que conflui na geração de equilíbrios, arranjos e estabilidades.

Ressaltamos, contudo, que os textos e suas configurações (oral ou escrita) fornecem pistas e deixam rastros; exercemos, enquanto participantes, papel fundamental em uma atividade de profunda complexidade no trato com “realidades discursivas”, pois lemos nas “entrelinhas” e empenhamo-nos, como (re)construtores, na mobilização de saberes e conhecimentos, buscando relacioná-los e articulá-los a esquemas de experiências outras e várias, a partir da socialização e da cultura.

Tem-se, então, a partir daquilo que vai sendo apontado, a construção do que envolve a compreensão textual, considerando, para tanto, que os humanos, seres de linguagem simbolicamente estruturada, organizam-se linguisticamente, a fim de produzir sentido(s) nas práticas comunicativas em que se engajam, podendo, tais práticas sinalizar coletivizações de experiências, bem como atitudes valorativas dos agentes, que atuam em movimentos de integração, em realidades que são sociocognitivamente fundamentadas.

As associações, neste texto propostas, têm por base estudos desenvolvidos por Marcuschi (2002; 2008; 2011), Kleiman (2002), Koch (2009), Carvalho (2014), Solé (2009), Bakhtin ([1979]1997), Löbler & Flôres (2010), Leffa (1996), Gonçalves (2008), Melo (2008), Bentes (2012), Paulino (2001), Leffa (1996), Salomão (1999), Carvalho (2010), Coscarelli & Novais (2010) e Lima (2001), em perspectivas que se somam e abrangem as noções de compreensão, emersão de sentido(s), no e para o estabelecimento de bases para o entendimento da leitura, a partir de construções interpretativas, bem como naquilo que configura conhecimento enquanto gatilho para as (re)significações, em articulação aos processos inferenciais e ao contexto, modelos mentais, para que a(s) compreensão(ões) dos textos seja(m) efetivada(s).

 

DESENVOLVIMENTO

 

Noções de compreensão - a emersão de sentido(s)

 

A língua, as produções e as compreensões textuais não devem ser tomadas em enquadres de permanência ou inércia, muito menos o/um sentido que se revela exclusivamente na decodificação, ainda que esta seja uma das etapas do ato de ler e interpretar. Considerando-se a natureza do ato de ler, Kleiman (2002, p. 12) comenta que a leitura deve ser observada como um “processo psicológico em que o leitor utiliza diversas estratégias baseadas em seu conhecimento linguístico, sociocultural e enciclopédico”. Aponta-se para o processo de compreensão, no trato com texto, como múltiplo, elaborado em uma dinâmica de cooperação, em realidade agentiva e que recorre, para sua real efetivação, a uma vasta gama de saberes instanciados na pluralidade.

Assim como a leitura, os arranjos proporcionados pela língua não são dados de maneira fragmentária, mas também a partir do conhecimento do código e das representações que os sujeitos, envolvidos em embates linguisticamente orientados, empenham-se na (re)construção de materialidades e exploram/expõem suas representações, mediante uma organicidade concebida enquanto texto.

Consideramos o texto não através de uma perspectiva estruturalista, como um conjunto de elementos de ordem estritamente gramatical ou, ainda, concebido enquanto um produto logicamente orientado e finalizado, como uma espécie de condutor que, através de um movimento de decodificação realizado pelo sujeito-leitor, traria à tona o reconhecimento ou o acesso direto aos pensamentos/mensagens do autor-produtor. Tomando essa perspectiva como base, não haveria espaço e abertura para o extralinguístico e as construções seriam elaborações sedimentadas nas relações de objetividade; por consequência, a compreensão, em nada, amparar-se-ia em um movimento efetivamente cooperativo e interativo, como assim a consideramos, e os usuários da língua sujeitar-se-iam às mesmas possibilidades interpretativas, infindavelmente repetidas, controláveis e únicas.

A emersão dos sentidos dar-se-ia, nesses moldes, de maneira clara, linear e limitada, com uma língua que denotaria correspondência entre referentes e mundo, apontando para certa passividade dos sujeitos, minimizado, pois, suas atividades a mero reconhecimento e reprodução de uma realidade textual focalizada em estruturas e superfícies. Assim, são considerados, em uma abordagem estrutural sobre a língua, apenas, os fatores de ordem cotextual, não integrados a outros elementos - cultura, história e sociedade - no universo da compreensão, sem que sejam, por exemplo, alcançados os não-ditos, posto que não são explicitados pelo código.

O que há, no entanto, é a repercussão da realidade humana localizada, que articula e interconecta o aspecto histórico, social e cognitivo, enquanto bases constitutivas dos interagentes, e contribui, essencialmente, para os deslocamentos realizados em movimentos interpretativos, a partir de produções textuais, no auxílio das (re)construção de significados intencionados ou não pelo “autor” do texto e, consequentemente, na interpretação da realidade, pois situados estamos e construímos “nossos mundos através da interação com o  entorno físico, social e cultural” (Koch, 2009, p. 79), mas também através dos nossos modelos, que operam (socio)cognitivamente na elaboração das situações discursivas que vão se revelando. A língua, então, mostra possibilidades de faces na interação e na atuação dos sujeitos sobre ela, em um mundo de coletividades, onde os agentes adéquam-na às possibilidades e aos efeitos/objetivos, supostamente pretendidos, através de (re)elaborações, a cada nova enunciação, por sujeitos que constroem e são construídos textualmente.

A compreensão pode ser validada, assim, como a construção de sentidos globais, mediante pistas linguisticamente apresentadas nos textos, ganhando contornos em uma atividade de coautoria, pois os sentidos não são de antemão dados e localizáveis, e dependem, como ressalta Carvalho (2014), das posições que os sujeitos ocupam, sejam: sociais, históricas, culturais ou ideológicas, em uma relação dinâmica e ricamente estruturada entre coletivo e individual, social e cognitivo, interno e externo, biológico e grupal, inter-relacionando-se em atuação conjunta. Os movimentos desempenhados para a construção das significações efetivam-se não em caráter isolacionista, mas através de uma rede integrada onde há negociação e operacionalização de recursos e elementos vários, a partir de um trabalho refinado de competência humana.

É importante salientar que não existem compreensões definitivas, singulares, mas sim convergentes, já que um texto mostra-se como “potencialidade” interpretativa entre o explicitado e o parcialmente complementado pelo trabalho dos leitores/ouvintes; ao transcorrer do tempo, há a possibilidade do aparecimento de novas significações, como sinaliza Marcuschi (2011, p. 92), já que “(...) o texto acha-se em permanente elaboração ao longo de sua história e das diversas recepções pelos diversos leitores”, pois as vivências e particularidades dos sujeitos experenciadores ativam uma pluralidade perceptiva, mediante o adquirido, armazenado e ativado para/na compreensão textual.

Para cada texto escrito ou enunciado, circunscrito em um gênero, há também a solicitação de leituras e comportamentos diferenciados, de modo tal que os interlocutores não assumem as mesmas posturas quanto a objetivos e intenções, lançando olhares e apropriando-se de maneiras distintas à leitura que procedem e às interpretações admitidas, em caminhos que possibilitam multiplicidades na (re)criação do sentido(s), em acordo com os interesses e finalidades, como nos aponta Solé (2009), em acessos que se dão sempre de maneira indireta.

Para que leituras e compreensões sejam efetivadas, considerando que ler não é meramente identificação mecanizada de informações, estratégias de alta complexidade são efetivadas, como: a seleção de dados, construção de relações entre eles, atenção a certas informações presentes no texto, pondo-as em maior ou menor grau de relevância, durante a leitura/escuta, etc. Ao utilizar-se de tais mecanismos, os interlocutores buscam a(s) (re)construção(ões) de sentido(s) dentro de margens possíveis, a partir de uma diversidade de perspectivas cabíveis, ativando esquemas e conceitualizações, que são revelados e tornados conhecidos de acordo  com os contextos1 sociocognitivos dos interlocutores.

A compreensão, entretanto, não é uma arena onde tudo é válido, apesar das variadas maneiras de proceder com a leitura, como aponta Marcuschi (2008), pois existem “autorizações” ou “horizontes”. Eles requerem, para que haja sucesso interpretativo, de uma certa equidade entre o universo do texto e os conhecimentos dos leitores nas (re)elaborações de realidades textuais, lugar onde os agentes atuam cooperativamente e por negociações no estabelecimento de conexões/elos.

O texto torna-se, então, o lugar, o espaço, para se atuar de maneira reflexiva, sobre o qual, a partir de um processo de coprodução, procede-se a avaliações, verificações e complementações em pontos de preenchimento, em caminhada interpretativa avaliativa, a fim de que, considerando as pistas lançadas, proceda-se a uma ou a outra interpretação, mobilizando memórias e estabelecendo articulações entre cotexto e modelos de contexto, que são ativados pelos interlocutores.

O papel desempenhado pelo autor/produtor demonstra uma atividade também complexa quanto à produção por ele efetivada, pois pressupõe audiência, traça caminhos e lança âncoras consideradas recuperáveis por seus interlocutores, prevendo compartilhamento de enquadres cognitivos similares. A compreensão pode ser vista como uma atividade que requer cumplicidade com o texto, a fim de que implícitos e ideias não reveladas na superfície textual sejam acessados, bem como concepções ideológicas trazidas à consciência do leitor, a partir de uma imersão mais profunda e engajada (Marcuschi, 2011). 

Uma atividade leitora realmente interativa e tomada por coerente vale-se das construções de um mundo plural e fluído, mas que ao mesmo tempo costura-se em um continuum, o que possibilita formulações, reformulações, aceitações, recusas, predições, etc., edificando-se enquanto uma atividade responsivo-ativa (Bakhtin, ([1979] 1997), mas também faz-se no entrelaçamento das vivências, quer com outros textos e leituras, quer com as experiências nos campos que compõem as mais diversas esferas da vida. Este somatório colabora e justifica, em alguma medida, as compreensões diversificadas e globalmente convergentes, quando do descortinar das intencionalidades, apontando para o(s) sentido(s) que não estão no texto em si, mas no interativamente constituído.

Entendemos, então, o texto de acordo com a perspectiva e as reflexões delineadas por Koch (2009, p. 9) como “[...] um constructo histórico e social, extremamente complexo e multifacetado, cujos segredos (...) é preciso desvendar para compreender melhor esse ‘milagre’ que se repete a cada nova interlocução”, isto é, elabora-se e torna-se compreensivo à medida que esforços são empregados pelos coenunciadores; aponta-se para interação, interconexão dos sujeitos e dos conhecimentos, o que também revela a heterogenia própria à língua e firma aquele constructo como um elo entre as práticas sociais que são (re)significadas a cada novo contato entre o sujeitos e a palavra, sendo os interagentes (op. cit., p. 20) “contemporâneos ou não, copresentes ou não, do mesmo grupo social ou não, mas em diálogo constante”.

Considera-se, portanto, a emergência da materialidade linguística a partir das articulações realizadas entre os agentes, o objeto (o texto) e o acesso a conhecimentos, que compõem um corpo de saberes relevantes e acionáveis nos movimentos de construção e reconstrução de significações, ligando os conhecimentos pressupostos ao explicitado textualmente, favorecendo um equilíbrio entre as informações dadas e os não-ditos, porém recuperáveis. Para tanto, deve-se contar com uma organização sistematizada, adequada, ajustada e escrita dentro de padrões pertencentes à situação comunicativa, que possibilite traçar e verificar hipóteses e garanta “que o leitor compreenda o texto e que (...) construa uma ideia sobre seu conteúdo, extraindo dele o que lhe interessa, em função dos seus objetivos” (Solé, 2009, p. 31).

Gradualmente, os sentidos vão sendo formatados e reformatados, construídos e reconstruídos, sem que haja uma linearidade sistematicamente pré-definida e configurada; eles completam-se ou complementam-se à medida que se avança no contato com a materialidade linguística, em conexões e articulações que deslizam em direção a significações sustentadas pelas assunções do autor-enunciador e do texto que se está a explorar.

A leitura, portanto, não é uma habilidade natural (inata), mas aprendida, e seu encaixe às configurações humanas - biológico, social e cultural - interferem na forma como a compreensão se realiza. Dependemos também de um sistema visual, mais especificamente quando tratarmos de textos escritos, e de um aparato cognitivamente equilibrado para que sejam efetivadas as interpretações, já que não são realizadas, apenas, através de informações pinçadas, do pontualmente reconhecido, em meio a unidades soltas e desarticuladas, mas ligações amparadas entre diversos conhecimentos disponíveis e utilizáveis, somados a conhecimentos já internalizados e selecionados, pois “quem compreende precisa mostrar que compreendeu e fazer uso do que foi compreendido de forma a modificar sua situação cognitiva inicial” (Löbler & Flôres, 2010, p. 182).

Amparar-se, portanto, em concepções que operem numa perspectiva em que sentidos são estabelecidos a partir de relações unívocas, em mera decodificação ou ainda em arranjos de letras e sílabas, é um recorte que não permite avanços e possibilidades que desemboquem no saber ou articulações para conhecimentos mais elaborados, dado que a compreensão está para além da exploração da significação de um vocábulo, do conjunto de algumas palavras ou da mera disposição destas no texto.

No que diz respeito ao quadro das compreensões e percepções, considera-se e valida-se também o aspecto temporal, como salientado por Leffa (1996), pois as (re)significações são viabilizadas nas interlocuções e afetam as “consciências” quando banham-se nas realidades discursivas, gerando intercâmbios significativos que são (re)construídos, possibilitando que os textos, enquanto instrumentos comunicativos, orientem-se dentro de certas realidades socioculturais e propaguem, como afirma Gonçalves (2008, p.148), “valores, ideologias, conhecimentos sobre o mundo”, requerendo uma agentividade reflexiva e consistente.

O sentido, todavia, como aponta Melo (2008, p. 90), “(...) dá-se por aquilo que o leitor ou produtor de um texto vê em seu mundo particular, que é um mundo também de coletividade”; as angulações são/estão embasadas nas singularidades que constituem os sujeitos e a elas tornam-se ajustáveis, mas são em algum grau compartilháveis, pois pautam-se ou apoiam-se no socialmente representado, e por elas somos afetados, já que as produções humanas orientam e exercem força estruturadora.

Para que essas produções possam ser compreendidas enquanto formações linguístico-textuais que se desdobram em sentidos, há um grande empreendimento por parte do leitor/ouvinte. Este desenvolve uma série de estratégias e parte da premissa direcionadora que o faz crer, ser toda aquela organização não só dotada de uma verdade, mas também articuladora de coerência, ainda que não se considere a coerência como existente no texto em si, mas resultante de uma atividade empreendedora dos interlocutores.

Bentes (2012) traz uma interessante perspectiva quanto aos papéis desempenhados pelos interlocutores nos movimentos que executam para atingir o alvo, o(s) sentido(s), e nos níveis cooperativos por eles a serem lançados mão, considerando, para tanto, as funções preenchidas e os enquadres situacionais, pois “a atitude do leitor ou destinatário ante uma determinada produção textual pode ser mais ou menos cooperativa; isso dependerá uma série de fatores, entre eles, o próprio papel social do leitor ou destinatário” (p. 276).

Os direcionamentos veiculados pela estudiosa levam-nos a entender a impossibilidade de se negar imagens produzidas, perspectivas assumidas, valor atribuído às produções textuais e a importância social com a qual se julga o hábito ou atividade leitora, dada a relevância e a particular importância que tal prática exerce no meio cultural, posta a sua capacidade transformativa, que circunscreve os acordos estabelecidos entre as sociedades e suas tradições: desde a valorização do instrumento leitura e seu status social e econômico, bem como a forma como essas interações são reconhecidas pelos grupos de indivíduos, mas também as práticas adotadas e a significação que podem favorecer a imersão em diferentes territórios do saber.

Considerando o aspecto social, o pertencimento grupal, a não desvinculação das individualidades, os arranjos e acordes das dinâmicas processadas em (inter)textos e os aspectos político-econômicos, como apontado por Paulino (2001), encaminha-se para amplitude daquilo que envolve o quadro do processamento textual, a sua construção apreensiva, a partir de um oceano margeado por possibilidades, em atuações ora conscientes ora  inconsciente do ato de ler e do que circunscreve os domínios e investimentos da prática leitora.

No que tange aos processos conscientes e inconscientes, Leffa (1996, p.153), assim como Paulino (op. cit.) concordam quando abordam a existência de um trânsito entre estes níveis e os subprocessos, apontando para uma variação “desde o nível inconsciente do processamento gráfico até o nível altamente consciente de atenção, exigida em tarefas como a monitoração da própria compreensão”, demonstrando, portanto, a realização de trocas ininterruptas entre essas instâncias.

O que isso faz refletir é que, embora tal atividade seja realizada a partir também de subprocessos, a operacionalização entre eles não se dá de forma desconexa. Para que seja possível uma efetiva orientação que reflita potencialmente na significação, todo o trabalho entre essas instâncias, em movimentos de maior ou menor vigilância, desloca-se por caminhos que validem o trajeto da leitura, fazendo com que as unidades trabalhem conjuntamente, a fim de que possam, como uma engrenagem, concorrer para um funcionamento orgânico, em trabalho articulado e harmonioso.

A compreensão desse todo, a partir da materialidade textual, desdobra-se em ocorrências interpretativas similares pelos agentes, posto que “existem inúmeros elementos no texto que nos encaminham em direção semelhante” (Coscarelli & Novais, 2010, p. 38), demonstrando, assim, que para cada situação enunciativa há estratégias, ações, buscas e sinais que concorrem para a existência de uma certa “estabilidade” na construção significativa, procedendo a (re)formulações que possam ser sustentadas pelo próprio texto, sem, contanto, deixar de considerar a dinamicidade que envolve tal processamento, mas sem também facilitar aproximações que levem às extrapolações, atingindo “horizontes indevidos” que, como definiu Marcuschi (2008), compreenderiam uma atividade leitora conduzida a interpretações indevidas, em graus de incompatibilidade e impossibilidades, relacionadas a um determinado texto, gerando sentido(s) equivocado(s) e bastante problemáticos(s)

O leitor, durante a (re)construção das informações e mensagens, vai validando os comportamentos, checando os caminhos que podem ser percorridos, com o intuito de que a atividade sobre a qual se debruça seja efetivada o mais eficazmente possível através das decisões, observações e constatações que o levem às camadas mais profundas em sua experiência de leitura, do explícito ao implícito. Assim, utilizando-se de habilidades e estabelecendo focos de interesse, compreendendo que não se está tratando com um recipiente ou um depósito, onde as informações são despejadas e ganham vida, cede-se, pois, “espaço” às trocas e às complementações efetivadas e (re)atualizadas nos câmbios e nos diálogos executados.

Não há, portanto, passividade leitora, e apesar de ser um movimento realizado de maneira individual, insere-se, pela própria constituição e organização humana, dentro de um conjunto, sugerindo potenciais de significação em atividade dialógica, pois

 

[...] fazer sentido (ou interpretar) é necessariamente uma operação social na medida em que o sujeito nunca constrói o sentido-em-si, mas sempre para alguém (ainda que este alguém seja si mesmo). Construir sentido, como já ilustramos, implica em (sic) assumir uma determinada perspectiva sobre uma cena, perspectiva que é também mutável no próprio curso da cena (Salomão, 1999, p. 71).

 

 

A Linguística aponta para a existência de posturas, inclinações e vieses perceptivos contornados pelas relações estabelecidas entre vivências, experiências, memórias, acúmulo e acomodação, social e cultural, em processos elaborativos através de capacidades e habilidades cognitivas próprias da espécie humana que, no contato com os outros agentes de interlocução, auxiliam e orientam a construção de “mundos” de sentido(s) através da linguagem.

Compreender, torna-se, de certo modo, uma explicitação de universos, daquilo que foi possível acessar e construir, tomando como base as ordens cognitiva, ideológica, social e cultural repertoriados e processados de maneira única, no entanto, compartilháveis com outros seres com os quais se interage em espaços diversos  da vida, a partir de conhecimentos que foram/são publicamente organizados e aceitáveis, em discursos e versões socialmente validados, que apontam para a complexidade de uma língua viva, em que convenções negociadas (Marcuschi, 2002; Carvalho, 2010).

voda essa complexa rede de relações, desemanharamentos e articulações só ocorrem no contato real e efetivo com a materialidade enunciada linguisticamente, em que o texto funciona como um “[...] input e é processado pelo leitor, que realiza diversas operações simultâneas e integradas, gerando, a cada momento, sentidos que podem ser mantidos, enriquecidos, reconstruídos ou modificados a cada segundo de leitura” (Coscarelli & Novais, 2010, p. 38).

 

Não há, partindo dessa perspectiva, como dizer que as palavras ou sequências arranjadas carregam em si e por si mesmas o significado, pois existe um dinamismo próprio a cada nova situação, fazendo emergir estruturas significativas, sem que, no entanto, todas as determinações prévias sejam estabelecidas, mas sem também contarmos com uma vagueza absoluta dos elementos que compõem a língua, pois elas, em algum grau, apontam para uma certa perspectiva em virtude das práticas comunicativas e de um processo de cooperação, na atuação de sujeitos cognitivos situados, que refletem domínios e práticas das comunidades às quais pertencem.

Como aponta Lima (2001, p. 22), “a linguagem desencadeia operações mentais, que terão papel fundamental na produção de sentido”, isto é, os significados são construções de ordem cognitiva que ganham estruturação, reconfiguração e atualização, considerando-se, para tanto, as diferentes vivências intergrupais, os saberes distintos, reunidos e ativados, mas acumulados também ao longo do percurso evolutivo humano, quer tratemos de conhecimentos ou práticas, ativados, certamente, dentro das parcelas que compõem as individualidades desses agentes de linguagem.

O que se precisa ter em vista, portanto, é que há sempre uma orientação do que fazer, como fazer, para quê fazê-lo, em direção a quem, com quais objetivos. Não nos construímos, tampouco elegemos modelos ou os configuramos sem compreendermos, minimamente, que, ao optarmos por determinados constructos e os tornarmos públicos, os fazemos por caminhos recheados de propósitos, intenções e com vistas a algum “alvo”, os nossos interlocutores, e, certamente, neles despertaremos a emergência de ideias, valores, atitudes, a partir da maneira como, no contato com aquela enunciação, eles processarão a situação social na qual estão inseridos; à audiência credita-se que certas significações serão alcançadas, bem como intenções reconhecíveis, partindo do tomado por relevante em um jogo interlocutivo, mas que não o será em outro.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

O que, aqui, apontado, não pretende ser o fim das discussões, posto que o aprofundamento em compreensões efetivas, no processualmente constituído, são marcadas por uma diversidade de saberes - linguístico, enciclopédico, interacional - como também indicam as implicações, dessa diversidade, no processo interpretativo e na própria condição sociocognitiva dos sujeitos linguageiros.

Autor e interlocutor exercem atividade em articulação, em prática conjunta, a fim de que sentido(s) seja(m) expandido(s) e significação(ões) construídas no momento próprio à interação, pois “as coisas ditas são discursivamente construídas e a maioria dos nossos referentes são objetos de discurso” (Marcuschi, 2007, p. 89), já que nada é dado a priori e os textos nunca estão prontos e acabados, mas tornam-se realidade e materializam-se; as referências tomam como suporte as esferas sociais, históricas, culturais e cognitivas que possibilitam, dentro de enquadres repertoriados, congruências e incongruências a cada novo acesso, em aproximações ou afastamentos decorrentes das experiências e das relações com universos estabelecidos e reconhecidos.

As percepções e perspectivas assumidas só são tornadas possíveis, porque as configurações e representações, nessas atividades, não estão localizadas em modelos mentais individuais, mas nos repertórios comuns aos interlocutores, no conjunto das relações estabelecidas também com a exterioridade, entre as intersubjetividades, dados os conteúdos/saberes que se organizam histórico, cultural, social e cognitivamente, em conhecimentos que emergem, mais uma vez, no compartilhamento e neles ganham alguma produtividade/relevância em processos interventivos e ações desempenhadas por sujeitos de linguagem.

A exposição aqui feita não teve como papel esgotar as abordagens quer no que concerne a aspectos cognitivos, de linguagem, de compreensão e de gênero textual, mas pontuar algumas questões envolvidas quando tratamos de (re)significação e emersão de sentidos. Apontamos, assim, indícios de como essa atividade pode se configurar, a partir de gatilhos, “refletindo” a existência de uma prática comum entre os interlocutores, em um processo complexo e plural,  em ordens e esforços realizados pelo(s) interactante(s) em (re)construções e (re)modelações, dado o entrecruzamento de informações várias, em elos formativos  que, para se sustentarem, consideram os conhecimentos prévios e  os indivíduos que se edificam em práticas situadas, mas, especialmente, entre implicitudes e explicitudes.

 

REFERÊNCIAS

 

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*Professora de Língua Portuguesa (CMB), Doutora em Letras (UFPE). Email: Este endereço para e-mail está protegido contra spambots. Você precisa habilitar o JavaScript para visualizá-lo.

 

1O contexto, na perspectiva adotada, é construído a partir das relações sociointerativas em que os atores sociais, mediante a situação de interlocução, tomam dados elementos como importantes, no intuito de produzir e compreender os discursos (Dijk, 2012). 

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