Revista Técnico-Científica O SABER

 ISSN: 1983-7658    

 

Revista Técnico-Científica O SABER 

 ISSN: 1983-7658


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Desenvolvimento da capacidade de concentração de estudantes do Ensino Médio, a partir do ensino da Sociologia: uma experiência didática

 

Bruner Titonelli Nunes 1 , Paulo Victor Rodrigues Mascarenhas 2

 

 DOI_logo.pnghttps://doi.org/10.63753/osaber.a15n15.75

 

RESUMO

 

Este artigo analisa uma experiência didática desenvolvida no Colégio Militar de Brasília (2022-2023) que estimulou a capacidade de concentração dos estudantes do Ensino Médio, nas aulas de Sociologia. Diante das dificuldades de aprendizagem, agravadas pelo uso excessivo de tecnologias digitais - que privilegiam a contextualização multimídia em detrimento do pensamento linear -, implementou-se uma estratégia de anotações ativas com reforço positivo (pontos bônus) para registros do conteúdo exposto. Os resultados mostraram maior engajamento dos alunos, com melhora na compreensão dos conteúdos e na internalização de conceitos sociológicos. Além disso, observou-se que a prática de anotações favoreceu a interação aluno-professor. Como estratégia de motivação, destacou-se a aplicabilidade dos conhecimentos sociológicos para além da disciplina, ilustrada pelo caso de um aluno que obteve nota máxima em repertório na redação do ENEM 2022. Os resultados indicam que a metodologia não apenas melhorou o desempenho em Sociologia, mas também desenvolveu habilidades transversais (concentração e organização do pensamento), contribuindo para a formação integral e sucesso em processos seletivos. A experiência sugere a viabilidade de estratégias pedagógicas que combinem exigência progressiva e incentivos concretos para o desenvolvimento cognitivo, num contexto marcado por distrações digitais.

 

Palavras-chave: Ensino da Sociologia. Concentração. Anotações ativas. Pensamento linear.

 

ABSTRACT

 

This article examines a teaching experiment conducted at the Military School of Brasília (2022-2023) that encouraged high school students' ability to concentrate in their sociology classes. In view of learning difficulties worsened by excessive use of digital technologies — which focus on multimedia contextualization over linear thinking — an active note-taking strategy with positive reinforcement (bonus points) was implemented to record the class content presented. The results demonstrated increased student engagement, with improved content comprehension, and better internalization of sociological concepts. Additionally, the note-taking practice enhanced the student-teacher interaction. As a motivational strategy, the study highlighted the applicability of sociological knowledge beyond the subject, exemplified by a student who achieved the maximum score in the "repertoire" criterion of the 2022 ENEM essay. The findings indicate that the methodology not only improved performance in sociology but also developed transversal skills (concentration and thought organization), contributing to comprehensive education and success in admissions processes. The experience suggests the viability of pedagogical strategies combining progressive demands and concrete incentives for cognitive development in digital distracting contexts.

Keywords: Sociology teaching. Concentration skills. Active note-taking. Linear thinking.

 

INTRODUÇÃO

 

A disseminação do uso do ciberespaço, de forma tão íntima, reordenou e aumentou o modo como o virtual foi incorporado ao nosso cotidiano. A pandemia de COVID-19 trouxe enormes impactos para a humanidade e apressou mudanças que já estavam em curso na sociedade. Pierre Levy (2010) levantou uma série de questões sobre as potencialidades do ciberespaço. O autor nos lembra que a noção do virtual já existia como conceito. Por outro lado, a disseminação do uso do ciberespaço, de forma intimamente conectada à vida humana, acelerou o universo de possibilidades que a vida virtual pode proporcionar (Pierre Levy, 2010).

A partir dessas potencialidades já em uso pela humanidade, é possível refletirmos sobre as inevitáveis mudanças cognitivas do processo. Da mesma forma que a alfabetização representa um processo de mudança cognitiva, em relação às pessoas não letradas (ONG, 1998), ao introjetar a internet e as redes sociais no cotidiano, a humanidade passou a desenvolver habilidades de contextualização multimídia. A escrita proporciona uma forma de organização do pensamento linear (como aquela que usamos na leitura de um livro). Quando se lê um livro estamos utilizando uma concentração unidirecional. Isso é muito diferente de olharmos no celular e, ao mesmo tempo, realizarmos multitarefas (ver um vídeo no “YouTube”, conversar com alguém presencialmente na mesma sala). Nesse último caso, temos o exercício da cognição fragmentada. 

Uma conversa entre usuários de uma rede social, em que um usuário escreve um “textão” e o outro responde como um “meme”, é um exemplo de debate, a partir de lógicas de pensamento diferentes. O texto apresenta uma lógica linear do pensamento, onde frases se sucedem na construção de uma ideia. Já o “meme” representa uma interação entre uma imagem e um pequeno texto de contextualização. A imagem abre espaço para a transmissão de sensações e ideias que tendem a ampliar as possibilidades interpretativas. Nesse contexto, é esperado uma certa dificuldade no encadeamento de ideias apresentadas, a partir da lógica de pensamento linear.

Estamos tratando de capacidades de contextualização de ideias diferentes, as quais acessam capacidades cognitivas diferentes. O fato da atual geração de estudantes, na maior parte do tempo, exercitar contextualizações nas formas de imagens e de pequenos textos - a partir do uso das tecnologias digitais - torna imprescindível uma escola que regate as habilidades de concentração e de pensamento linear. Essa necessidade parte da constatação que vivemos um momento histórico de profundas mudanças nas relações entre indivíduos, mundo sensível e mundo digital.

O objetivo deste artigo é descrever uma experiência didática ocorrida nos anos de 2022 e 2023, na disciplina de Sociologia no Colégio Militar de Brasília (CMB). O ponto de partida dessa experiência didática foi a percepção de que o incremento da capacidade de concentração dos alunos teria o potencial de melhorar a absorção dos conteúdos de Sociologia3. Ainda, com uma expectativa mais ampla especulou-se que o desenvolvimento dessa habilidade poderia trazer impactos positivos na totalidade da formação escolar dos alunos.

 

DESENVOLVIMENTO

 

Apresentação do trabalho

 

A partir da constatação da dificuldade de um conjunto significativo de alunos em acompanhar adequadamente o conteúdo ministrado, o professor elaborou e aplicou uma experiência didática com o objetivo de incentivar o desenvolvimento de habilidades de concentração e de pensamento linear.

O presente trabalho desenvolve sua argumentação em quatro eixos principais: 1) identifica os desafios da concentração na era digital, contrastando o pensamento linear com a cognição fragmentada das mídias sociais; 2) detalha a metodologia aplicada, com um sistema progressivo de anotações ativas e de reforços positivos que evolui de registros simples da escrita para registros elaborados dos conteúdos orais; 3) além da preocupação metodológica, demonstra também preocupação com o engajamento dos alunos demonstrando sua utilização concreta em provas de concurso. Assim, uma redação do ENEM escrita por um aluno do CMB é apresentada como constatação da eficácia do método; 4) finalmente, o texto relaciona as teorias de Weber, Bourdieu e Freud, as quais fundamentam a abordagem pedagógica, com reflexões dos resultados observados, após um ciclo completo dessa experiência didática.

 

Experiência didática para a concentração: bonificação e desafios progressivos

 

O desenho dessa experiência didática começou ainda no ano de 2022, no primeiro ano do Ensino Médio. O fato de trabalhar com um grande contingente de alunos foi positivo para a negociação e implementação da proposta, uma vez que os alunos já estavam habituados à dinâmica das aulas do professor. Assim, no último trimestre de 2022, foi concedido um ponto bônus para os alunos que apresentassem suas anotações sistematizadas no caderno4 (incluindo aquelas que o professor escrevia no quadro durante as aulas).

Isso representou um reforço positivo para a execução de uma tarefa básica, compreendida como “obrigação dos alunos”, mas que não era exercida por grande parte do contingente. O ato de copiar as anotações do quadro foi entendido como um primeiro passo para maior aproximação dos alunos com a disciplina, como adaptado de Oliveira (1996). No contexto do trabalho antropológico, ao se observar etnograficamente uma sociedade analisada, o antropólogo escreve um diário de campo com sua experiência (Oliveira, 1996). Essa escrita é, em si, uma construção cognitiva. Isso significa que, ao escrever suas vivências, o pesquisador consegue compreender melhor algumas das situações observadas.

No ano de 2023, o contingente de alunos chegou ao segundo ano do Ensino Médio. O professor expôs aos alunos uma rotina contínua, voltada à consolidação da proposta, para as aulas de 40 minutos. Após a apresentação da turma, o professor passa a escrever o conteúdo no quadro. Entre 10 e 15 minutos de aula (a depender da quantidade de informação no quadro), o professor começa a ministrar o conteúdo. Nesse momento, os alunos devem estar com o quadro copiado e, dessa forma, será possível tomar notas das explicações do professor. Os 5 minutos finais da aula são reservados para conceder um carimbo no caderno dos alunos, o qual atesta a correta sistematização das anotações. Dessa forma, a efetiva explicação do professor tem a duração de 20 a 25 minutos. Esse é o tempo de plena atenção exigido dos alunos a cada aula5.

Os alunos que conseguiam todos os carimbos eram bonificados, com até um ponto na nota da primeira avaliação de cada trimestre. Na implementação dessa experiência didática, o nível de exigência do professor apresentou um aumento progressivo, ao longo do ano letivo. O primeiro trimestre representa uma fase de adaptação, onde os alunos ganham o carimbo anotando as escritas do quadro, aquelas realizadas no começo da aula e, ainda, aquelas realizadas durante a explicação. A meta seguinte é que os alunos comecem a tomar notas sistematizadas das explicações do professor. É esperado que o volume das anotações comece menor e aumente com a prática e com a concentração dos alunos. Ao final da aula, durante a conferência das anotações (abonamento com o carimbo), o professor avalia como está o desempenho individual dos alunos. Sem escrever durante a aula, os alunos erroneamente têm a impressão de que conseguiram fixar plenamente o conteúdo. Entretanto, como explicado acima, o processo de escrita não é somente de fixação das ideias. É sobretudo um processo de internalização do conteúdo aprendido.

 

Em busca de engajamento: ferramentas sociológicas numa redação do ENEM

 

Essa experiência didática sobre o aumento da capacidade de concentração esteve atrelada à disciplina de Sociologia. Portanto, ela é um caminho estabelecido pelo professor que, nesse primeiro contexto, apresenta resultados internos da própria disciplina. Um primeiro cenário de desafio a ser contornado está no fato de que um número relevante de alunos possui pré-noções negativas sobre a disciplina. Em busca de um engajamento maior da atenção dos alunos, uma das estratégias foi evidenciar ganhos instrumentais passíveis de materialização no desempenho escolar, para além da Sociologia. A ênfase na relação entre o bom uso das ferramentas sociológicas e uma melhora no repertório geral, habilidade fundamental para Redação, por exemplo, foi um dos incentivos para maior engajamento dos alunos. 

Essa escolha também foi adotada com a análise de uma avaliação de concurso. O aluno Paulo Victor Rodrigues Mascarenhas prestou o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) como treineiro6, ao final de 2022 (momento em que cursava o primeiro ano). O tema da redação do ENEM de 2022 foi: "Os desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil". Toda sua argumentação foi baseada nos conteúdos sociológicos, especificamente no tópico sobre o nascimento da Antropologia. O aluno Mascarenhas atingiu a nota 960 na redação, alcançando a nota máxima em repertório. Dessa forma, essa redação tornou-se um ótimo exemplo para demonstrar como um aluno que prestou atenção nas aulas e seguiu adequadamente a experiência didática de tomar notas conseguiu esses excelentes resultados 

Como vários alunos demonstraram dificuldades na compreensão desse processo de transformar um conteúdo sociológico em um texto dissertativo, tal qual cobrado no ENEM, esta seção do artigo é dedicada justamente a sua descrição. Quando discutimos o assunto em sala de aula, foi apresentado aos alunos o pensamento de Raymundo Nina Rodrigues. Como médico, escritor, antropólogo e etnólogo brasileiro, Nina Rodrigues possuía uma perspectiva baseada na antropometria. Os pesquisadores dessa linha de trabalho mediam os corpos e trabalhavam conceitos de “superioridade” e de “inferioridade” entre grupos humanos, utilizando características físicas (em especial a cor da pele). Essas práticas pseudocientíficas ficaram conhecidas como racismo científico.

Em seguida, falamos dos teóricos culturalistas. Primeiro Franz Uri Boas e depois de Gilberto de Mello Freyre. Gilberto Freyre tirou o sinal negativo da miscigenação no Brasil e destacou seus pontos positivos. Seus estudos representaram um verdadeiro alívio para a busca de imagens positivas do país. Entretanto, os estudos de Florestan Fernandes e de outros sociólogos paulistas mostraram que a ideia de uma suposta democracia racial era uma falácia7. Não se sustentava, a partir de relatos qualitativos e estatísticos sobre a situação dos negros no Brasil. Efetivamente, o racismo no Brasil foi percebido de maneira ambígua e geralmente do ponto de vista de pessoas brancas, mas não de pessoas negras.

E por que será que essa versão sobre democracia racial ainda é repetida por algumas pessoas, mesmo hoje em dia? O aluno Mascarenhas, em sua redação do ENEM (ver Apêndice), iniciou sua introdução falando de Franz Boas e do reconhecimento de que relações harmônicas entre diferentes culturas é extremamente positivo. Entretanto, não é isso que observamos na prática. Assim, em muitos países e inclusive no Brasil, são propostas reparações históricas. Mascarenhas introduziu a ideia de relativismo, ao fazer essas afirmações. No segundo parágrafo, o aluno citou Gilberto Freyre e seu extenso trabalho sobre a miscigenação no Brasil. O trabalho de Freyre facilitou a valorização das experiências dos povos tradicionais. Entretanto, e esse ponto está presente no terceiro parágrafo, somente com Florestan Fernandes ficou evidente o “tratamento de minoria” destinado historicamente aos povos tradicionais, no Brasil. Esse ponto acaba por contrapor o “mito da democracia racial” teoricamente presente no país. No parágrafo final, Mascarenhas faz a proposição de uma campanha de conscientização e da inclusão na Base Nacional Comum Curricular de conteúdos sobre a importância e valorização dos costumes e conhecimentos dos povos tradicionais. Dessa forma, segundo Mascarenhas, seria possível um maior intercâmbio de conhecimentos e a formação de um “país mais plural”.

Visando a estimular o senso crítico e o engajamento na resolução de problemas sociais, o ENEM opta por selecionar, como temas de suas redações, questões que envolvem os desafios atuais da sociedade brasileira. Uma vez que são as questões sociais o grande objeto das redações do ENEM, muitas das propostas de redação passam diretamente por áreas de estudo da Sociologia. Assim, o estudo dos autores clássicos da Sociologia é o estudo das bases fundadoras da disciplina. As teorias que se sucederam após Durkheim, Marx e Weber valeram-se, de forma mais ou menos evidente, das ferramentas de análise sociológica criadas por esses autores (Silva et al., 2017). Logo, o conhecimento de suas obras proporciona a habilidade de compreender as situações analisadas para que seja possível apontar suas possíveis causas, além de identificar e propor soluções.

A discussão de soluções é justamente a proposta de intervenção em consonância com os direitos humanos, exigida na conclusão das redações do ENEM, competência 5 da sua grade de correção, cujo valor quantitativo são 200/1000 pontos. Uma adequada proposta de intervenção exige mais do que um repertório sociocultural. Resolver um problema demanda não apenas seu real entendimento, mas também a compreensão do meio (ou seja, da sociedade) em que está presente. Embora a finalidade da intervenção possa ser clara, não é possível apontar um agente, uma ação e uma forma de executá-la sem que haja o conhecimento prévio das instituições sociais envolvidas, dos motivos históricos e das maneiras com que a questão é vivenciada individualmente. Atesta-se, por isso, as ferramentas sociológicas como peças essenciais na elaboração de uma boa redação.

Ademais, os conteúdos estudados na Sociologia podem ser diretamente utilizados para a construção da argumentação necessária a uma dissertação argumentativa. A exemplo da redação do aluno Mascarenhas, a escola culturalista é um excelente ponto de partida para temas que envolvam contato entre diferentes culturas. Paralelamente, a perspectiva de Florestan Fernandes, cuja outra vertente de pensamento permite uma contraposição de ideias positivas para o estudo do assunto, ajuda a situar as populações tradicionais como minorias, sendo possível compreender, portanto, um contexto de preconceito sobre seus hábitos de vida.

Ainda em relação ao tema da redação do ENEM aqui discutido (“Desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil”), os conceitos de relativismo cultural (enriquecimento de discussões pelo contato de diferentes pensamentos e as condições para que fossem possíveis) fornece um caminho não só para argumentos, mas também para o embasamento de repertórios. Desde que se conheça contexto, conceito e autor, é possível reconhecer a situação em que se aplica uma teoria, relacioná-la a outras, utilizá-la como argumento e fundamentá-la na obra proposta pelo autor. Assim, satisfaz-se as competências 2 e 3 do ENEM: “Compreender o tema e não fugir do que é proposto” e “Selecionar, relacionar, organizar e interpretar informações, fatos, opiniões e argumentos em defesa de um ponto de vista”. Essas competências valem mais 400 pontos na nota dos candidatos.

 

Weber, Bourdieu e Freud: trilhas teóricas de uma experiência prática

 

A excelente nota da redação do aluno Mascarenhas resultou de competências e habilidades previamente constituídas. É importante frisar que essa performance não foi alcançada “por mágica”. Foi um processo facilitado por um contexto muito favorável. A habilidade de concentração é fundamental em nosso mundo competitivo. Weber tratou da ética ascética protestante, voltada ao trabalho, e relacionou-a ao incentivo para o desenvolvimento inicial do capitalismo (Silva et al., 2017). Ao fazer isso, Weber tratou de hábitos culturais que se alinhavam com práticas e uma perspectiva de mundo que proporcionaram aos protestantes maiores chances de sucesso no nascente mundo do capitalismo.

Isso quer dizer que, na média, os protestantes possuíam um incentivo cultural que lhes proporcionava um significativo impulso para o sucesso profissional. O ponto é: alguns contextos culturais e familiares incentivam os processos de desenvolvimento de habilidades, os quais auxiliam e facilitam o sucesso dentro da sociedade atual. Ou seja, alguns alunos conseguem desenvolver, dentro do ambiente familiar, uma elevada capacidade de concentração, além de outras habilidades e conhecimentos úteis para o sucesso profissional.

É importante reconhecer essa diferença quanto ao ponto de partida dos alunos. Como apontado por Bourdieu (2003), a escola é justamente o espaço em que essas habilidades podem ser trabalhadas, incentivadas e aumentadas. Segundo o autor, ignorar que os alunos chegam à escola com diferentes níveis de aquisição cultural e habilidades desenvolvidas é uma postura definitiva para o papel de reprodução das desigualdades já instituídas anteriormente (Bourdieu, 2003). Nesse sentido, nossa experiência didática visa possibilitar o desenvolvimento e o amadurecimento de alunos (mesmo em um cenário de desvantagem) e, ao mesmo tempo, incentivar o crescimento daqueles que já possuem vantagens comparativas. Isso se deve ao fato de que cada aluno é individualizado no seu processo de desenvolvimento, tendo a si mesmos como parâmetros de comparação.

É possível pensar sobre o processo de amadurecimento, a partir de dois conceitos de Freud (Psicanálise Clínica, 2017). São eles: o princípio da realidade e o princípio do prazer. O processo de amadurecimento acontece em meio às escolhas entre prazer e dor. Quando nascemos, desejamos só prazer. No processo de amadurecimento escolhemos abrir mão do prazer, em alguns momentos, para usufruir de um ganho futuro. Estudar e prestar atenção nas aulas exige esforço. Dormir mais cedo para não ter sono nas aulas exige esforço. Sentar para ver um vídeo no ambiente virtual disponibilizado pelo colégio exige esforço. Fazer e refazer exercícios das disciplinas exige esforço. Tudo isso faz parte da escolha dos alunos para uma carreira de sucesso no futuro.

Efetivamente, é normal e esperado que adolescentes desenvolvam habilidades diferentemente uns dos outros. Todos os alunos do Ensino Médio executam atividades nas quais conseguem se concentrar enormemente. A dificuldade é justamente conseguir se concentrar naquelas atividades que não desejam. Claro, gostar da área deixa tudo mais fácil. É mais difícil para alguns do que para outros conseguir se concentrar em algo que não é do seu interesse. E a escola é o lugar em que essas habilidades podem ser trabalhadas. Nesse experimento didático, o professor solicitou de 20 a 25 minutos de atenção plena na aula. Sabe-se que é um tempo curto, mas talvez seja um ponto de partida para a atual geração de estudantes.

Vivemos um processo contemporâneo em que muitas profissões estão desaparecendo, enquanto outras surgem. As habilidades para cada uma delas serão diferentes, mas podemos nos planejar, a partir da realidade atual. As escolhas feitas neste momento terão impactos em qualquer dos caminhos profissionais a serem seguidos pelos alunos. Obviamente, não são escolhas definitivas, mas que auxiliam e facilitam o alcance de metas desejadas.

Na perspectiva dos próprios alunos, houve relatos de melhora da compreensão dos conteúdos ministrados, além de percepções de que o esforço em anotar as explicações do professor aumentou a internalização do conteúdo. Isso ocorre uma vez que é necessário submeter as falas do professor a uma interpretação pessoal, a fim de adequadamente transformá-las num conjunto de anotações pessoais. Nesse sentido, foram especialmente interessantes as avaliações de que a nova maneira de se engajar na aula expandiu a noção de qual era a função do professor e o valor de racionalizar o conteúdo presencialmente.

Simultaneamente, o reforço do canal de comunicação oral gera mais intimidade entre discentes e docente do que a mera anotação do quadro, de forma a tornar a transmissão do conhecimento menos mecânica e mais efetiva. Dessa maneira, conceitos abstratos são melhor veiculados e apreendidos, dada a necessidade que os alunos têm de submeter essa informação a um crivo pessoal para decidir como anotá-la, ao invés de meramente copiar a ideia por extenso no papel. Essa conclusão é amparada nas considerações dos alunos que afirmaram compreender melhor a própria pessoa do professor e, assim, entenderam e se adequaram ao seu modo de lecionar.

Ademais, o esforço ativo de estar anotando uma informação coletada dinamicamente, ou seja, em uma aula sem possibilidade de repetição ou pausa, como no ambiente virtual, se mostra uma capacidade de grande importância para o desenvolvimento pessoal dos alunos, dado o contexto em que estão inseridos. Esse formato de aprendizado permite que dúvidas sejam tiradas de imediato e que o processo de aprendizagem seja menos solitário.

Até o final de 2023, observou-se um aumento significativo na capacidade de anotação dos alunos, incluindo aqueles que inicialmente afirmavam: “Professor, eu só consigo prestar atenção se eu não escrever”. Alguns alunos, inclusive, afirmavam que esse era um exercício que funcionaria somente para os alunos que já obtinham boas notas. Entretanto, como o professor avaliava e incentivava os alunos individualmente, cada um deles tinha a si mesmo como parâmetro de comparação. Dessa forma, foi possível verificar um incremento nas anotações, ao mesmo tempo em que havia um aumento progressivo da dificuldade - enquanto no início os ganhos eram por anotações diretas do quadro, no trimestre final exigia-se o registro elaborado das ideias apresentadas. Cerca de metade dos alunos de cada turma atingiu os critérios avançados nos segundo e terceiro trimestres.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Após a conclusão de um ciclo completo foi possível perceber resultados muito positivos dessa experiência didática. A proposta de aumento da concentração dos alunos, baseada nas anotações ativas com reforço positivo e progressão das dificuldades, ganhou mais alunos adeptos, ao longo do ano escolar. A metodologia mostrou-se especialmente relevante no contexto atual de tecnologias digitais. A transição gradual de anotações do quadro para conteúdos orais transformou a aprendizagem em um processo mais reflexivo, conforme atestado pelos alunos.

Assim, a experiência mostrou-se promissora para o amadurecimento estudantil não apenas na disciplina de Sociologia. Portanto, espera-se que a ampliação dos mecanismos fixadores de aprendizado pelos alunos melhore o rendimento nos estudos e nas avaliações.

Por fim, a experiência reforça o papel da escola como espaço fundamental para o desenvolvimento de habilidades cognitivas essenciais. A abordagem baseada em princípios sociológicos e psicológicos demonstrou potencial para utilização em outras disciplinas curriculares. A combinação de exigência progressiva, incentivos e acompanhamento individual demonstrou ser um método capaz de preparar os estudantes para desafios futuros.

AGRADECIMENTOS

Os autores são gratos aos professores Leidiane da Silva Carvalho de Souza, Carlos Eduardo Rocha Laureti e Matheus Batista Firmato de Almeida pelas inspirações pedagógicas que tornaram possíveis o presente trabalho.

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, P. (2003) A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. In : Escritos de Educação . Petrópolis: Vozes, p. 41-64.

GEERTZ, C. (1978) O impacto do conceito de cultura sobre o conceito de homem. In : A interpretação das culturas . Rio de Janeiro: Zahar.

LEVY, P. (2010) Cibercultura. Rio de Janeiro: Editora 34.

MAIO, M. C. (1999) O projeto UNESCO e a agenda de ciências sociais no Brasil nos anos 40 e 50. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14, p. 141-158.

NOGUEIRA, O. (2007) Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil. Tempo Social, v. 19, n. 1, p. 287-308.

OLIVEIRA, R. C. (1996) O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever. Revista de Antropologia, v. 39, n. 1, p. 13-37.

ONG, W. (1998) Oralidade e cultura escrita. Campinas, SP: Papirus.

PSICANÁLISE CLÍNICA (2017) Princípio do Prazer e da Realidade para Freud. Disponível em: <https://www.psicanaliseclinica.com/principio-do-prazer-realidade/> Acesso em: 13 jun. 2023.

SILVA, A.; LOUREIRO, B.; MIRANDA, C.; et al. (2017) Sociologia em movimento. São Paulo: Editora Moderna.

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1Professor de Sociologia (CMB), Doutor em Antropologia Social (UnB). Email: Este endereço para e-mail está protegido contra spambots. Você precisa habilitar o JavaScript para visualizá-lo.

2Aluno do Colégio Militar de Brasília (CMB)

3Como uma referência de contexto histórico a longo prazo, é importante lembrar que a paciência e a concentração são características fundamentais da espécie humana em termos evolutivos. Geertz (1978) nos lembra que o desenvolvimento do sistema nervoso central foi crucial para a nossa sobrevivência como espécie. Em tempos recentes, é simples apontar que o trabalho científico necessita do exercício contínuo da paciência e do foco, uma vez que os resultados das pesquisas podem levar muitos anos. Nesse sentido, todo o trabalho científico é baseado na paciência e na concentração dos muitos pesquisadores que se sucederam, ao longo da história.

4Essa prática docente foi inspirada em experiências já implementadas nas disciplinas de História e de Geografia, no mesmo ano letivo.

5O quadro é um recurso didático utilizado há séculos. A disponibilização do conteúdo no quadro com o uso de diferentes cores - para as anotações do começo da aula e para aquelas advindas das explicações do professor - mostrou-se bastante eficiente na implementação da experiência didática.

6Um treineiro é um candidato que realiza o ENEM, antes de concluir o Ensino Médio.

7Na Segunda Guerra mundial aconteceu um genocídio com os judeus. O conceito de genocídio foi criado justamente nesse contexto. Uma das medidas da UNESCO foi incentivar a disseminação de conceitos como o relativismo cultural, o qual representa uma forma de enxergar culturas diferentes de forma não preconceituosa e, consequentemente, minimizar os riscos de comportamentos intolerantes (como os que acabavam de ocorrer com os judeus). Um primeiro olhar estrangeiro tinha a esperança de encontrar, no Brasil, um país exemplo de relações raciais saudáveis. Entretanto, pesquisas da década de 1950 comprovaram a existência de racismo no Brasil. Um dos grandes achados foi que, no Brasil, o racismo se manifesta de forma diferente em relação a outros países. Nogueira (2007) utilizou os conceitos “preconceito de marca” e “preconceito de origem” para diferenciar Brasil e Estados Unidos da América, nesse aspecto. Sobre o projeto da UNESCO ver Maio (1999).

 

 

 

  

APÊNDICE

Redação ENEM 2022

 

 

Candidato: Paulo Victor Rodrigues Mascarenhas.

Tema: “Desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil”.

Desde a consolidação, no século passado, da escola culturalista de sociologia, fundada pelo francês (sic) Franz Boas, é amplamente reconhecido na comunidade científica que o contato harmonioso entre duas culturas é positivo para os integrantes de ambas. Contudo, esse consenso não se reflete nas políticas governamentais, as quais suprimem minorias tradicionais no Brasil e desprezam chances de dialogar sobre temas de preocupação global, como o desmatamento, com aqueles que deles são mais próximos. Urge, então, a análise do que é perdido e das causas da situação, com a finalidade de repará-la.

Primeiramente, conforme o sociólogo brasileiro de destaque internacional Gilberto Freyre, culturalista, a miscigenação de etnias fornece um ambiente mais fértil para o desenvolvimento de soluções inclusivas e eficazes de problemas, os quais são vivenciados de formas distintas por diferentes povos. No Brasil, em especial em aquilo que tange ao meio ambiente, os grupos tradicionais oferecem experiências singulares e indispensáveis para a superação dos obstáculos. Entretanto, essa plataforma de diálogo depende de condições só notadas por um sucessor de Freyre.

Em segundo lugar, é essencial para que a simbiose cultural ocorra a representação igual de todos os envolvidos. Isso foi apontado por Florestan Fernandes, pesquisador do racismo no país, quem (sic) derrubou o mito da “democracia racial” brasileira proposto por Gilberto. Florestan mostrou que a formação histórica da nação situou populações, a exemplo dos povos tradicionais, como minorias. Assim, a maioria governante oprime-as e elas não têm voz para sequer serem conhecidas pelo restante da população. Esse processo culmina, finalmente, em suas extinções e na consequente perda de sabedoria ancestral. Portanto, é urgente que haja intervenção nele.

À luz do acima exposto, torna-se imperiosa a ação do Governo federal, na figura do Ministério da Educação, de conscientizar os jovens, base formadora da sociedade, sobre a existência, os costumes e a importância das comunidades e povos tradicionais no Brasil. Isso deve ser feito por meio do aumento na Base Nacional Curricular Comum (sic) da previsão de ensino sobre os grupos tradicionais, a fim de prevenir a perda de seus conhecimentos e potencializar o intercâmbio desses. Então, criar-se-á um país mais plural, com maior identidade nacional e capaz de resolver as questões ambientais que não só lhe são, mas também são ao mundo, tão relevantes.

 

 

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